Aprendi com os velhos mestres escolásticos que um dos recursos mais frequentes nas justas cavalheirescas do espírito há de ser a distinção lógica dos termos: assim aconselhavam eles no final dum conhecido hexâmetro didático: distingue frequenter. Onde quer que se insinue a confusão, aí se impõe ela. E, não raro, nos dá, deveras, a sensação dum raio de sol em plena treva. Ora, um dos vocábulos mais confusos da linguagem polêmica é precisamente a intolerância. Tanto assim que podemos distingui-la, não em duas, mas em três espécies, que, para maior clareza ou efeito gráfico e mnemônico, designarei por três pês: intolerância de pessoas, de palavras e de pensamentos.
Nada mais anticristão do que a intolerância de pessoas. Basta abrir os evangelhos: Jesus levou nesse terreno a tolerância a tal auge que escandalizou os fariseus, pois, afrontando-lhes embora a indignação e o desprezo, achegou-se aos publicanos e pecadores. E máxime em pritaneus acadêmicos, como o nosso, é que se ela impõe, como já fazia notar, com a costumada lepidez, o saudoso confrade Carlos de Laet: "Neste habitáculo das letras, escreveu ele, a tolerância de pessoas não é somente uma virtude, mas uma exigência impreterível, para a serenidade em nossos debates, mesmo naqueles que mais nos escandescem, isto é, os da questão ortográfica".
Não é, portanto, essa, a intolerância, de que se possa acusar o catolicismo, porque ninguém menos católico, nem mais intolerável, do que um católico intolerante para com as pessoas.
Em segundo lugar, vem a intolerância de palavras, compreendendo-se nesta expressão toda a intolerância no modo de expor ou defender a doutrina. E esta igualmente, longe de praticar, há de condená-la quem quer que se preze de verdadeiro católico. Mestre das controvérsias católicas, investido oficialmente nesse título pelo Papa reinante, é S. Francisco de Sales. E é ele próprio quem nos diz que o polemista, que se enfada, torna suspeita a sua causa. A luz da verdade, ensina ainda ele, não se dardeja aos olhos do adversário, com perigos de cegá-lo: faz-se-lhe alvorecer de mansinho. E tamanho era o seu cavalheirismo, que desejara tratar os contendores, não somente com luvas, mas luvas perfumadas. E aqui vem a propósito aquelas duas palavras com que os livros santos definem a ação da Providência no governo do mundo: fortiter e suaviter, as quais bem se podem aplicar ao floreio elegante da dialética, na mão dos paladinos da causa católica: firmeza na verdade, gentileza no defendê-la. Fortiter in re, suaviter in modo.
Esta firmeza na verdade nos leva naturalmente a considerar a terceira classe de intolerância, que é a do pensamento. E esta, sim, meus Senhores, devo confessar-vos que o catolicismo não somente a professa, mas dela faz timbre nas armas heráldicas do seu apostolado, outra coisa não sendo ela, senão a intolerância do erro. E não há condescendências nem amizades que valham a justificar a adoção do erro, um só que seja. Já dizia Aristóteles que, com ser amigo e admirador de Platão, não deixava de o ser, e muito mais, da verdade: Amicus Plato, sed magis amica veritas.
Muitos, todavia, nem com essa intolerância se conformam, e a razão se me antolha óbvia: é que não admitem a verdade integral dos dogmas do cristianismo. Diante destes, a situação dos católicos continua a ser aquela mesma de Jesus em presença de Pilatos: ante a convicção com que o Cristo falava da verdade, que viera revelar ao mundo, pergunta-lhe o procurador da Judéia, com um sorriso de humorismo, que bem se lhe adivinha nos lábios: "E que vem a ser a verdade?" Quid est veritas? (JoXVIII, 38).
E, efetivamente, para os que vêem na doutrina católica, a par de algumas verdades, não poucas superstições e crendices, nada mais insuportável que a presunção com que a proclamamos e defendemos contra tudo que lhe repugne. Mas, por outro lado, se o católico, convencido como deve estar dessas verdades, a ponto de, no dizer de Pascal, deixar-se degolar por elas, não praticasse essa intolerância daria bem triste prova da sua convicção, ou, melhor, documentaria a sua incoerência. Tolerar ideias contraditórias é próprio só de espíritos que ainda não se firmaram na verdade. Há de se, pois, fazer justiça aos católicos, reconhecendo, ao menos, a coerência da sua atitude: verdade e erro não se toleram entre si, repelem-se: hurlent de se trouver ensemble.
O que vos eu acabo de expor, não é meu, nem novo: acha-se já admiravelmente cristalizado, há 16 séculos, naquela fórmula clássica de Santo Agostinho, que assim reza: "Amai aos homens, destruí os erros, certos, mas não soberbos de possuir a verdade, e lutando, mas sem paixões, por ela!" Diligite homines, interficite errores: sine superbia de veritate praesumentes, sine saevitia pro veritate certantes.
Não se pense, entretanto, que tudo no cristianismo sejam dogmas: ao lado destes, existem aí também não poucas teses incertas e duvidosas. A intolerância, de que falamos, circunscreve-se aos domínios do dogma; fora daí, há liberdade de pensamento. É o que lapidarmente, como costumava, fixou o mesmo Santo Agostinho neste brocardo, que tão de molde vem ao nosso assunto: "No dogma, unidade; na dúvida, liberdade; em tudo, caridade". In certis unitas, in dubiis libertas, in omnibus caritas.
Nem será por demais frisar melhor aqui esta liberdade de pensamento, para que se não cuide que, em se tratando de dogmas, desapareça ela, de todo em todo, o que seria falso. Basta, para isso, distinguir na fé o seu ato e o seu objeto. O ato de fé é sempre livre, essencialmente livre, tão livre que sem liberdade não pode existir a fé: ou se crê livremente, ou não se crê. Daqui a estultícia da fábula do "crê ou morre!" O objeto da fé, este sim, é que exclui a livre escolha, não podendo ser outro que a verdade.
Dom Francisco de Aquino Corrêa, Mensagem aos Homens de Letras (Proferida na Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro, 14 de janeiro de 1937). Em: Discursos, vol. II, tomo II, Brasília, 1985, pp. 176-178.
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